O Abuso do Direito de Ação e a Responsabilidade Civil em Casos de Impedimento Judicial da Interrupção da Gestação: Análise do REsp 1.467.888/GO à Luz da Jurisprudência Brasileira
- Thais Marachini
- 6 de mai.
- 4 min de leitura
A judicialização de questões que envolvem a interrupção da gestação suscita relevantes debates no campo do Direito Civil, Constitucional e Bioético. Em especial, quando se trata de gestações nas quais há diagnóstico de anomalias fetais incompatíveis com a vida extrauterina, como a Síndrome de Body Stalk, o ordenamento jurídico se vê desafiado a ponderar, com sensibilidade, os direitos fundamentais da gestante e os limites da proteção ao nascituro. O presente artigo tem por objetivo analisar, de forma pedagógica e aprofundada, a controvérsia jurídica envolvendo a impetração de habeas corpus com o intuito de impedir procedimento de interrupção de gravidez já judicialmente autorizado, sob a ótica do abuso do direito de ação e da eventual responsabilidade civil por danos morais decorrentes da medida. A análise se baseia, especialmente, no julgamento do Recurso Especial nº 1.467.888-GO, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no qual o Superior Tribunal de Justiça enfrentou diretamente o tema.
Desenvolvimento
A controvérsia se originou da tentativa de impedir, por meio de habeas corpus com pedido liminar, a realização de procedimento médico para interrupção da gestação de um feto diagnosticado com Síndrome de Body Stalk — patologia grave, letal e incompatível com a vida extrauterina. A interrupção havia sido autorizada judicialmente, mediante avaliação médica criteriosa, e contava com o consentimento dos pais. No entanto, a liminar deferida no habeas corpus suspendeu o procedimento, provocando a continuidade da gravidez contra a vontade da gestante, culminando no nascimento do bebê, que faleceu após uma hora e quarenta minutos de vida.
Tal cenário exigiu do STJ o enfrentamento de uma delicada questão: a utilização do direito de ação para impedir o exercício de um direito individual assegurado pela Justiça e, em consequência, a produção de dano moral passível de reparação.
É sabido que o ordenamento jurídico brasileiro assegura o direito à vida e à dignidade da pessoa humana como princípios basilares (art. 1º, III, e art. 5º, caput, da Constituição Federal). No entanto, tais direitos não são absolutos e devem ser interpretados à luz da realidade fática e dos demais princípios constitucionais, como a intimidade, a liberdade, a autonomia da vontade e o direito à saúde e à vida privada (art. 5º, X e LXXVIII da CF).
No julgamento da ADPF 54, o Supremo Tribunal Federal entendeu que, nos casos de anencefalia — condição igualmente incompatível com a vida —, a interrupção da gestação não configura crime e pode ser realizada com autorização judicial. Essa decisão firmou a compreensão de que a proteção ao nascituro está condicionada à viabilidade de vida extrauterina, pois a proteção jurídica conferida à vida intrauterina é projetada na expectativa de um futuro nascimento com vida. Quando tal expectativa se mostra inexequível, o Direito não pode impor à gestante a continuidade de um sofrimento psíquico e físico extremo, que viola seus direitos fundamentais.
No caso do REsp 1.467.888-GO, o STJ ampliou esse raciocínio. A Corte reconheceu que a impetração de habeas corpus com o objetivo de suspender decisão judicial legítima e respaldada por evidências médicas configurou abuso do direito de ação. O direito de ação, embora constitucionalmente assegurado, encontra limites no princípio da boa-fé objetiva e na vedação ao exercício abusivo de direitos, previsto no art. 187 do Código Civil. O abuso se verifica quando o titular do direito o exerce de forma imprudente, com a finalidade de prejudicar terceiro ou desvirtuar a finalidade do próprio instituto jurídico invocado.
No caso concreto, a atuação de terceiros que, em nome de valores pessoais ou religiosos, buscaram impedir a concretização de uma decisão amparada pela Justiça, não apenas violou o direito à intimidade e autonomia do casal, como também impôs sofrimento adicional e desnecessário à mãe, que já enfrentava uma gestação marcada pela certeza do luto. A liminar concedida — posteriormente cassada — não apenas suspendeu um procedimento médico, mas perpetuou um trauma, cuja consequência emocional foi reconhecida pelo STJ como dano moral compensável.
A Corte identificou três dimensões da ilicitude na conduta dos impetrantes: (a) violação à intimidade e autonomia do casal; (b) agressão à honra dos pais, ao qualificar a interrupção judicialmente autorizada como assassinato; e (c) ação temerária e instrumentalizada, que gerou sofrimento desnecessário. Tais fundamentos reforçam o entendimento de que a liberdade de ação não pode se sobrepor à liberdade de decisão alheia em questões personalíssimas, especialmente quando há respaldo técnico e judicial à conduta da gestante.
Conclusão
O julgamento do REsp 1.467.888/GO marca um importante precedente sobre os limites do direito de ação e os contornos da responsabilidade civil em contextos de grande sensibilidade humana e jurídica. O reconhecimento do abuso do direito por meio da impetração de habeas corpus para impedir a interrupção de gestação legalmente autorizada evidencia que o exercício de direitos constitucionais não pode servir de instrumento para a imposição de convicções pessoais sobre decisões íntimas de terceiros.
A jurisprudência, ao reafirmar o direito da gestante à autodeterminação em casos de inviabilidade da vida extrauterina do feto, prestigia os princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia e da não intervenção indevida de terceiros nas decisões reprodutivas. Ademais, evidencia que o uso indevido dos mecanismos processuais pode configurar ilícito civil, ensejando dever de indenizar quando resultar em violação a direitos fundamentais.
Portanto, o caso analisado não apenas reafirma a necessidade de limites éticos e jurídicos ao exercício da ação judicial, como também fortalece a proteção aos direitos reprodutivos e à integridade emocional das mulheres diante de gestações inviáveis.









Comentários