Famílias Recompostas e Testamento: Como Equilibrar os Direitos do Cônjuge e dos Filhos de Uniões Anteriores
- Thais Marachini
- há 3 dias
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As transformações sociais das últimas décadas trouxeram novas configurações familiares. O casamento deixou de ser a única forma de constituição de família, e as famílias recompostas, formadas por casais com filhos de relacionamentos anteriores, tornaram-se uma realidade cada vez mais comum.
Essas estruturas, embora repletas de afeto, apresentam desafios jurídicos complexos, especialmente no momento da sucessão. A falta de planejamento pode gerar disputas entre o cônjuge sobrevivente e os filhos de diferentes uniões, comprometendo o patrimônio e os vínculos familiares.
O testamento, nesse contexto, assume papel essencial. Ele permite que o titular do patrimônio harmonize os direitos sucessórios, respeitando os limites da lei e, ao mesmo tempo, valorizando os laços afetivos e a vontade pessoal.
2.1. Base Legal: Herança, Legítima e Parte Disponível
O ponto de partida para o equilíbrio entre os herdeiros é o art. 1.846 do Código Civil, que assegura aos herdeiros necessários: descendentes, ascendentes e cônjuge, o direito à legítima, correspondente a metade dos bens da herança.
A outra metade, chamada parte disponível, pode ser livremente destinada pelo testador por meio de testamento.
É nessa parcela que o testador pode adequar sua vontade às particularidades da família recomposta, incluindo, por exemplo:
proteção do cônjuge sobrevivente, que pode não ser o pai ou mãe dos demais herdeiros;
reconhecimento de enteados com vínculos afetivos consolidados;
compensações patrimoniais para filhos de diferentes uniões.
Assim, o testamento torna-se instrumento de equidade, ajustando o patrimônio às realidades afetivas da família moderna.
2.2. O Cônjuge como Herdeiro e os Regimes de Bens
O regime de bens adotado no casamento ou na união estável é determinante para definir o quinhão hereditário do cônjuge.
De acordo com o art. 1.829 do Código Civil, o cônjuge concorre com os descendentes quando casado sob comunhão parcial, separação obrigatória ou participação final nos aquestos, desde que existam bens particulares deixados pelo falecido.
Na prática, isso significa que o cônjuge não concorre sobre os bens comuns adquiridos durante o casamento, mas tem direito à sua meação, e poderá herdar parte dos bens particulares.
Esse ponto é frequentemente fonte de conflito nas famílias recompostas, pois filhos de relações anteriores podem questionar a extensão dos direitos do novo cônjuge.
O testamento atua, portanto, como instrumento de equilíbrio e transparência, esclarecendo a vontade do falecido e evitando disputas judiciais.
2.3. A Possibilidade de Incluir Enteados e Filhos Afetivos
A lei brasileira ainda não reconhece automaticamente os enteados como herdeiros, salvo se houver adoção formal.
Contudo, o testamento permite incluir filhos afetivos e enteados na sucessão, dentro da parte disponível, como forma de reconhecimento moral e material desses vínculos.
A jurisprudência contemporânea, em especial o STJ, vem reconhecendo a paternidade socioafetiva como título jurídico legítimo para fins de filiação, desde que comprovada a convivência contínua, pública e duradoura.
O testamento, nesse sentido, pode funcionar como ponte entre o afeto e o Direito, consolidando relações familiares reais que a lei ainda trata de modo restrito. Por meio dele, o testador expressa o amor e o reconhecimento a quem fez parte de sua vida, conferindo legitimidade a vínculos construídos fora da biologia.
2.4. Cláusulas de Proteção e Planejamento Patrimonial
Em famílias recompostas, é comum o desejo de proteger o cônjuge sobrevivente sem prejudicar os filhos de uniões anteriores.
Algumas soluções jurídicas eficazes são:
Instituição de usufruto vitalício em favor do cônjuge, garantindo-lhe moradia e segurança;
Cláusula de incomunicabilidade, para evitar que bens destinados ao cônjuge integrem patrimônio de eventual novo casamento;
Legado de renda ou quota empresarial, assegurando o sustento do companheiro sobrevivente;
Distribuição equilibrada de bens, com compensações proporcionais entre filhos e cônjuge.
Essas estratégias devem ser redigidas com clareza e técnica, sob orientação jurídica especializada, para evitar nulidades e respeitar os limites da legítima.
2.5. O Papel do Advogado na Mediação Familiar e na Redação do Testamento
Em famílias recompostas, o advogado desempenha papel preventivo e conciliador.
Cabe a ele compreender a história, as sensibilidades e os vínculos afetivos envolvidos, traduzindo-os em linguagem jurídica coerente.
A assessoria jurídica preventiva permite ao testador construir um testamento equilibrado, que:
respeite a lei e a legítima;
garanta proteção ao cônjuge e aos filhos;
reduza o risco de litígios e ressentimentos.
Mais do que uma formalidade, o testamento elaborado com acompanhamento profissional é um ato de pacificação, que honra o afeto e preserva a memória familiar sem gerar disputas.
Conclusão
As famílias recompostas refletem a diversidade e a complexidade das relações humanas contemporâneas.
Nelas, o testamento se torna o instrumento mais eficaz de justiça afetiva e patrimonial, pois permite equilibrar direitos, proteger pessoas queridas e evitar conflitos entre cônjuge e filhos de uniões anteriores.
Com planejamento, sensibilidade e técnica, o testamento transforma-se em um verdadeiro ato de amor jurídico, capaz de perpetuar o cuidado e a harmonia mesmo após a morte.
Assim, o Direito das Sucessões cumpre sua função mais nobre: preservar a vontade, o afeto e a paz entre aqueles que permanecem.
Por Thais Marachini Freitas – Advogada (OAB/SP 451.886)
Especialista em Direito de Família e Sucessões









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