Compra e venda simulada entre companheiros e fraude às regras sucessórias
- Thais Marachini
- há 3 dias
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As uniões estáveis formadas em idade avançada suscitam importantes discussões sobre o regime de bens e os efeitos sucessórios decorrentes. O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 1.759.756/PR, enfrentou situação em que uma companheira recebeu de seu parceiro septuagenário um imóvel por meio de escritura pública de compra e venda, ato que, segundo o Tribunal, mascarava uma doação simulada e visava fraudar as regras sucessórias.
O caso reafirma a proteção legal conferida ao idoso e o caráter imperativo do regime de separação obrigatória de bens quando um dos conviventes é sexagenário no início da união estável, conforme o artigo 1.641, II, do Código Civil.
“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos”
O processo teve origem em ação anulatória ajuizada pela irmã do falecido, única herdeira colateral, que buscava anular a escritura de compra e venda realizada entre ele e a companheira. O Tribunal de Justiça do Paraná reconheceu a simulação do negócio jurídico, entendendo que a suposta compra e venda, sem prova de pagamento e sem movimentação financeira compatível, foi utilizada para retirar o bem da sucessão.
Segundo o acórdão, o falecido possuía 76 anos à época do início da união estável, o que atraiu a incidência obrigatória do regime da separação de bens. Assim, os bens particulares adquiridos antes da convivência não poderiam ser comunicados à companheira, tampouco integrariam o patrimônio comum.
O STJ, ao analisar o recurso especial interposto pela companheira, manteve o acórdão estadual, ressaltando que:
“Houve ato simulado em fraude às regras sucessórias, e portanto, nulo de pleno direito, nos termos do inciso VI, do artigo 166 do Código Civil.”
Em suma, o STJ não conheceu do recurso, consolidando o entendimento de que negócios jurídicos celebrados entre companheiros idosos, sem respaldo econômico e com aparência de compra e venda, podem ser anulados por fraude à lei sucessória.
Conclusão
O julgamento evidencia a necessidade de transparência e formalidade na gestão patrimonial durante a união estável, especialmente quando há significativa diferença etária ou vulnerabilidade de um dos conviventes.
Ainda que a escritura pública goze de presunção de validade, essa presunção é relativa e pode ser afastada quando comprovada a ausência de causa lícita e o intuito de burlar a ordem de vocação hereditária.
O precedente reafirma a finalidade protetiva do regime de separação obrigatória de bens e adverte que a autonomia privada encontra limites na boa-fé e na função social do Direito Sucessório.
Abaixo a decisão:
RECURSO ESPECIAL Nº 1759756 - PR (2018/0207756-9)
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. ESCRITURA PÚBLICA. COMPROVAÇÃO DE SIMULAÇÃO.
NULIDADE DO REGISTRO QUE SE IMPÕE. DESCONSTITUIÇÃO DESSA CONCLUSÃO.
IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. FUNDAMENTO INATACADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 283/STF. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.
DECISÃO
Trata-se de recurso especial apresentado por Giane Tormes Carlotto, com base no art. 105, III, a e c, da Constituição Federal.
Compulsando os autos, verifica-se que a recorrida ajuizou ação de anulação de escritura pública de compra e venda de imóvel (e-STJ, fls. 3-9), tendo o Juízo de primeiro grau julgado improcedente o pedido (e-STJ, fls. 193-197).
Interposta apelação pela ora recorrida, o Tribunal estadual decidiu, por unanimidade, dar-lhe provimento, em acórdão assim ementado (e-STJ, fls. 320-322):
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ANULATÓRIA DE COMPRA E VENDA COM RESERVA DE USUFRUTO - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA - PRELIMINAR - INOBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE - INEXISTÊNCIA - RECURSO QUE SE INSURGE CONTRA A FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA - CUMPRIMENTO DO ARTIGO 1010 DO CPC/2015 - PRELIMINAR REJEITADA - MÉRITO - PRETENSÃO DE NULIDADE - NEGÓCIO JURÍDICO REALIZADO ENTRE COMPANHEIROS - ATO SIMULADO EM FRAUDE A LEI - CONSTATAÇÃO - IMPOSIÇÃO DO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS QUANDO UM DOS CONVIVENTES É SEPTUAGENÁRIO NO INÍCIO DA UNIÃO ESTÁVEL - APLICABILIDADE DO ARTIGO 1641 DO CC - PRECEDENTES DO STJ - IMÓVEL EXCLUSIVO DO COMPANHEIRO - BEM PARTICULAR QUE SERIA DESTINADO A SUCESSÃO SEM CONCORRÊNCIA DA COMPANHEIRA PASSANDO A HERDEIRA COLATERAL - INCIDÊNCIA DO ARTIGO 1829 DO CC - AUSÊNCIA DE PROVA FINANCEIRA DE PAGAMENTO DO PREÇO E DE PREÇO VIL - ÔNUS DESCUMPRIDO - ARTIGO 373, INCISO II DO CPC - VIOLAÇÃO AS REGRAS LEGAIS SUCESSÓRIAS - ATO NULO DE PLENO DIREITO - ARTIGO 166, INCISO VI DO CÓDIGO CIVIL - SENTENÇA REFORMADA - HONORÁRIOS RECURSAIS, NÃO ARBITRAMENTO, ANTE PROVIMENTO DO RECURSO, COM FUNDAMENTO NO ART. 85, § 11°, DO CPC/15 E ORIENTAÇÃO DO STJ.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. Cabe ao réu o ônus de comprovar que pagou o preço do imóvel e que o valor não se constitui em vil, nos termos do inciso II, do art. 373, do CPC/15, evitando a constatação de fraude na compra e venda realizada por escritura pública.
2. Se o falecido poderia dispor livremente de seu patrimônio, por existir somente herdeira colateral, não haveria razão para a realização de compra e venda com reserva de usufruto de imóvel particular à companheira, sobretudo por não entrar ele na partilha, decorrente da imposição do regime de separação obrigatória ao sexagenário, evidenciando burla as regras sucessórias.
Apresentados embargos de declaração pela ora recorrente (e-STJ, fls. 341-348), estes foram rejeitados (e-STJ, fls. 371-389).
Nas razões do recurso especial (e-STJ, fls. 393-412), fundado no art. 105, III, a e c, da Constituição Federal, a recorrente alega violação aos arts. 374, IV, do CPC/2015; 108, 113, 166, 167, 215, 499 e 1.245 do CC, além de afirmar a existência de dissídio jurisprudencial.
Assevera que, uma vez realizada a compra e venda entre companheiros, de bens particulares, através de escritura pública com quitação, bem como, inexistindo vícios de vo ntade, não pode o Tribunal local declarar nulo o negócio realizado, sob o fundamento de que a recorrente não fez prova de pagamento.
Acrescenta ser indevido presumir fraude às regras de sucessão hereditária.
Contrarrazões apresentadas, oportunidade em que a recorrida pleiteia a condenação da parte recorrente em multa por litigância de má-fé (e-STJ, fls. 463-466).
O Tribunal de origem admitiu o processamento do recurso especial.
Brevemente relatado, decido.
No caso sub judice, a Corte estadual reformou a sentença para julgar procedente o pedido de anulação do registro constante da escritura pública (acerca do imóvel situado à Avenida Botucaris, n. 740, Bairro Santa Cruz, Capanema -PR), asseverando que está devidamente demonstrada a ocorrência de simulação, não se desincumbindo a ré, ora recorrente, de comprovar a sua alegação de que comprou o bem do de cujus.
A propósito, confira-se os seguintes trechos do acórdão combatido (e-STJ, fl. 328-337, sem grifo no original):
Pretende a Apelante a reforma da sentença recorrida, ao fundamento de que, não houve avaliação pelo d. juízo originário de que, pelo regime de bens atribuído a união estável havida entre seu falecido irmão e a Apelada Ré, em razão da idade daquele, e a incomunicabilidade do imóvel, a realização de compra e venda com cláusula de usufruto vitalício entre eles, simulou doação, e de consequência, veio a fraudar as regras sucessórias, pois, seria única herdeira dele.
Inicialmente, nos autos originários, é fato incontroverso a existência da união estável entre o falecido Mikolaj - irmão da Apelante, com a Apelada Giane, pelo período compreendido entre o ano de 2007 até 22/07/2013.
Pela certidão de óbito do falecido, na data do início da união estável, contava ele com 76 anos de idade.
Com isso, é orientação jurisprudencial pacificada de que, nestes casos, afasta-se o regime da comunhão parcial de bens previsto pelo artigo 1725 do Código Civil, aplicando-se o da separação obrigatória, regida pelo artigo 1641 do referido Codex3, não só por ser norma protetiva pela fragilidade do indivíduo alcançada pela idade, mas também, porque é mandamento constitucional a equiparação com o casamento.
[...]
A partir dessa constatação, haverá implicação na sucessão do falecido, pois, a Apelada será meeira e herdeira no patrimônio comum, ou seja, naqueles bens adquiridos durante a vigência da união estável. Nos bens particulares do de cujus, em virtude de sua idade, e do regime, não participará, cuja sucessão se dará pela regra disposta no artigo 1829 do Código Civil'.
[...]
Portanto, nos bens comprovadamente particulares do falecido, a companheira não entra na sucessão, passando ela para os herdeiros dele quando de sua abertura.
Aqui, também é incontroverso que o falecido não possuía filhos, pais vivos, somente a irmão Apelante - colateral de 1° grau.
Essa digressão é importante para se analisar se o negócio jurídico realizado entre o falecido e a Ré Apelada, não só seria válido, diante da liberdade de disposição, mas também, se ele não foi simulado fazendo as vezes de doação, no escopo de fraudar as regras legais sucessórias.
No caso, a sentença recorrida entendeu que poderia o falecido dispor de seu patrimônio, por não ser a Apelante herdeira necessária, apresentando ele lucidez quando da realização do ato.
Inicialmente, é necessário afirmar que, não se discutiu em momento algum dos autos, a lucidez ou não do falecido quando do ato, nem esse foi o fundamento posto na inicial, portanto, não poderia a sentença presumi-la, sobretudo porque essa conclusão dependeria de prova técnica, que não foi sequer aventada de realização.
Ademais, a regra disposta no artigo 1641 do Código Civil, não só possui natureza protetiva, mas pressupõe o legislador a existência de fragilidade do indivíduo sexagenário, podendo ser facilmente convencido pelas circunstâncias na tomada de decisões, razão pela qual, em decorrência dessa idade, impôs o regime da separação obrigatória, prevenindo lesões ao seu patrimônio pessoal em razão de possível má decisão.
Com isso, se pelo artigo 1850 do Código Civil5 o falecido teria plena liberdade de dispor do seu imóvel para a companheira através de testamento ou doação, não haveria respaldo jurídico à realização da compra e venda com cláusula de usufruto vitalício.
Então, houve ato simulado em fraude as regras sucessórias.
Afinal, esse imóvel foi adquirido pelo falecido anteriormente a união estável havida entre ele e a Apelada - isso também é fato incontroverso nos autos. Então, sendo bem particular não concorreria a companheira em sua sucessão, passando somente a herdeira colateral, ora Apelante.
E a fraude restou comprovada pela ausência de prova financeira, cujo ônus seria exclusivamente da Apelada (art. 373, II, CPC/2.0156), ao não juntar recibo de pagamento, além da demonstração de transferência ou depósito bancário, revelando o pagamento do preço, e que se pagou aquele valor, de não ser ele preço vil, conforme declarações do setor imobiliário, não apresentando nenhuma de tais provas, quando da apresentação de sua contestação.
[...]
No presente caso, claro restou que o ato de compra e venda do imóvel foi em simulação e fraude as regras sucessórias, e portanto, nulo de pleno direito, nos termos do inciso VI, do artigo 166 do Código Civil', devendo o imóvel voltar a sucessão do falecido.
Voto pelo provimento do recurso interposto, para julgar procedente os pedidos iniciais, declarando nula a compra e venda com cláusula de usufruto entre o falecido e a apelada, por violação as regras legais sucessórias, determinando o retorno do imóvel ao patrimônio do espólio, invertendo-se o ônus de sucumbência, cujos honorários advocatícios restam arbitrados em R$ 2.000,00, corrigidos pelo INPC a partir da data do acórdão e juros moratórios de 1% ao mês desde o transito em julgado.
Em complementação, por oportunidade do julgamento dos embargos de declaração, o Tribunal originário assim se pronunciou (e-STJ, fls. 380-385, sem grifo no original):
Com relação a alegada existência de omissão no acórdão embargado, no tocante a condição de herdeira da companheira sobrevivente ao caso, além de qual regra legal restou violada, constou expressamente que:
[...]
Pela simples leitura do v. acórdão, verifica-se que o referido imóvel estaria fora do regime incidente à união estável havida entre a Embargante e o falecido, bem como teria sido ele adquirido exclusivamente pelo companheiro falecido anteriormente a sua vigência, portanto, incomunicável, afastando-se a condição de meeira e herdeira da companheira sobre ele.
Então, pela ordem de vocação hereditária - artigo 1829, inciso IV, do Código Civil, esse bem passaria diretamente a irmã do falecido, ora Embargada, cujo negócio jurídico realizado sobre ele, sem respaldo de demonstração financeira a fundamentar a 'compra e venda' evidenciaria a fraude a regra legal, acarretando a sua nulidade de pleno direito, ocasionando a volta do imóvel ao patrimônio do espólio.
Sendo assim, não há que se falar em omissão.
Por outro lado, sustenta a Embargante ter havido contradição, em virtude da veracidade e legalidade do negócio jurídico realizado mediante escritura pública, cujo ônus da prova de desconstituir a quitação seria da Embargada, bem como de que as relações negociais seriam pautadas pela boa -fé, inexistindo qualquer ilegalidade na compra e venda noticiada.
[...]
Contudo, além de não ter apontado a Embargante trechos do v. acórdão para fins de análise da invocada contradição, o que levaria a não obrigatoriedade de se incursionar sobre a questão, pelo princípio da eventualidade, para que não reste dúvidas sobre a temática, passo a analisá-la.
Todo negócio jurídico deve ser analisado sob a ótica da boa-fé, sobretudo quando formalizada por escritura pública.
Tal fato, por si só, não acarreta na presunção absoluta de que o negócio jurídico é inquestionável e/ou legal.
No presente caso, ao ter se questionado a ilegalidade da compra e venda com cláusula de usufruto havida entre os companheiros, como forma de excluir o imóvel da ordem de vocação hereditária, trouxe a discussão a respeito da quitação nela passada, cujo ônus de comprovar que teve respaldo financeiro a operação era da Embargante, afinal quem possui prova da saída do numerário para tal pagamento é ela e não a Embargada, não podendo dela se exigir a realização probatória sobre fato negativo.
A presunção de veracidade foi desconstituída nos autos originários, a partir do momento em que a Embargante deixou de juntar recibo de pagamento, além da demonstração de transferência ou depósito bancário, revelando o pagamento do preço, tampouco de que, uma vez pago, não seria ele preço vil, conforme declarações do setor imobiliário, não apresentando qualquer prova quando de sua contestação.
Com isso, reforçou-se a configuração da fraude à lei, nulificando a realização da compra e venda de imóvel havida entre os companheiros.
Ressalta-se que essa constatação, inclusive, encontra-se descrita no próprio aresto colacionado pela Embargante às fls. 78 -TJ.
A simples liberdade de disposição patrimonial do falecido não respalda a inexistência de negócio jurídico, por não ter ocorrido o fato da compra e venda, cuja escritura pública foi lavrada somente no escopo de lhe dar legalidade formal.
Então, não tendo a Embargante trazido respaldo probatório à demonstração da legalidade do negócio jurídico, sobretudo sua capacidade econômico-financeira à aquisição do imóvel do companheiro falecido, evidenciada a burla a ordem de vocação hereditária, cujo negócio jurídico foi realizado e intentado no simples proposito de retirar o bem da sucessão.
Da análise do acórdão recorrido, infere-se que o TJPR concluiu que a ré, ora insurgente, não se desincumbiu da faculdade de comprovar de teria comprado o imóvel em questão.
Ademais, na hipótese ora em foco, o Tribunal a quo, sopesando detidamente o conjunto fático-probatório dos autos, consignou estar evidenciada a ocorrência da simulação, apta a desconstituir o registro constante da escritura pública do imóvel objeto do feito.
Portanto, não há como alterar a conclusão exarada pelo Tribunal estadual (de estar comprovada a ocorrência de simulação), sem que proceda ao reexame dos fatos e das provas colacionados ao presente processo, o que não se admite no âmbito do recurso especial, em decorrência da incidência da Súmula 7/STJ.
(...)
Ante o exposto, não conheço do recurso especial.
Publique-se.
Brasília, 13 de abril de 2021.
MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator
(REsp n. 1.759.756, Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe de 14/04/2021.)









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