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A Incomunicabilidade no Testamento e o Regime de Bens na Sucessão: Como Fica o Cônjuge?

  • Foto do escritor: Thais Marachini
    Thais Marachini
  • há 5 dias
  • 7 min de leitura

O testamento é um instrumento de expressão da vontade e de planejamento sucessório, mas também um espaço onde se encontram a liberdade do testador e a proteção das relações familiares.


Entre as cláusulas mais utilizadas está a incomunicabilidade, que impede que o bem herdado integre o patrimônio comum do casal.


Quando essa cláusula é imposta em testamento, surge a dúvida: como ela se harmoniza com o regime de bens do casamento e com os direitos do cônjuge sobrevivente?Este artigo busca esclarecer esse ponto de intersecção entre o Direito das Sucessões e o Direito de Família, com base nas normas do Código Civil.


1. O que é a Cláusula de Incomunicabilidade


A cláusula de incomunicabilidade é uma restrição imposta pelo testador (ou doador) que impede que o bem recebido por herança ou doação se comunique com o cônjuge ou companheiro, ainda que o regime matrimonial preveja comunhão.


Seu fundamento está no art. 1.668, I, do Código Civil, que exclui da comunhão:


“os bens doados ou herdados com cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar.”


Essa restrição pode ser utilizada para preservar a destinação do bem dentro da família de origem, proteger o patrimônio de eventual dissolução conjugal, ou garantir autonomia financeira ao beneficiário.


2. Relação entre a Incomunicabilidade e o Regime de Bens


A incomunicabilidade se sobrepõe ao regime de bens.


Mesmo que o casamento seja regido pela comunhão parcial ou universal, o bem herdado com cláusula de incomunicabilidade não se comunica com o cônjuge.


Assim:


  • Comunhão parcial de bens: os bens adquiridos onerosamente durante o casamento se comunicam, exceto os herdados com incomunicabilidade.

  • Comunhão universal: a regra é a comunicação de todos os bens, mas a cláusula de incomunicabilidade prevalece e exclui o bem da comunhão.

  • Separação total: a cláusula é praticamente inócua, pois não há comunicação patrimonial.


Portanto, o testador pode, por testamento, proteger o patrimônio familiar, assegurando que o bem herdado permaneça de uso exclusivo do herdeiro, sem se misturar ao patrimônio do casal.

 

3. Efeitos na Sucessão e Direitos do Cônjuge


Na sucessão, o cônjuge sobrevivente pode ser meeiro, herdeiro, ou ambos, conforme o regime de bens e o tipo de bem envolvido.


Quando há cláusula de incomunicabilidade:


  • O cônjuge não tem direito à meação sobre aquele bem, pois ele é de propriedade exclusiva do herdeiro beneficiado.

  • Contudo, permanece o direito sucessório (herança), se o regime e as regras de vocação hereditária assim permitirem (art. 1.829, CC).


Exemplo prático:


Se o casal era casado em comunhão universal, e o falecido deixou bens herdados com cláusula de incomunicabilidade, o cônjuge sobrevivente não terá meação sobre esses bens, mas poderá concorrer como herdeiro quanto à legítima, caso haja descendentes.


Em síntese: a incomunicabilidade limita a meação, mas não exclui o direito sucessório.

 

4. Função e Limites da Cláusula


A incomunicabilidade é legítima, mas não absoluta. A jurisprudência entende que ela deve respeitar:


  • A função social da propriedade;

  • A proporcionalidade e razoabilidade da restrição;

  • E a temporariedade, extinguindo-se com o falecimento do beneficiário.


Assim, a cláusula protege, mas não pode servir de instrumento de exclusão injustificada ou de perpetuação patrimonial desarrazoada.

 

5. Jurisprudência Aplicável: O Reconhecimento da Concorrência do Cônjuge, Mesmo em Bens Incomunicáveis


A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que a cláusula de incomunicabilidade — embora impeça a comunhão patrimonial durante o casamento — não retira o cônjuge sobrevivente da sucessão hereditária.


Em outras palavras, o bem gravado com incomunicabilidade não integra a meação, mas integra a herança, permitindo a concorrência sucessória do cônjuge com os demais herdeiros.


O leading case é o AREsp nº 1.100.382/SP, julgado pela Terceira Turma do STJ, sob relatoria do Ministro Moura Ribeiro, em 05/02/2018, cuja ementa sintetiza o entendimento (retirada dos nomes das partes):


AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.100.382 - SP (2017/0109742-6) - DECISÃO

X interpôs agravo de instrumento contra decisão que, nos autos do inventário dos bens deixados por seu filho Y, rejeitou a impugnação que ofereceu às primeiras declarações apresentadas por Z, que foi casada com o falecido no regime legal, e decidiu que esta concorre com a ascendente na partilha dos bens particulares.

Sustentou, em síntese, que é a única herdeira dos bens particulares deixados pelo de cujus, cabendo à Z direito apenas aos adquiridos a título oneroso na constância do casamento.

O Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao agravo, nos termos da seguinte ementa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO.

Sucessão legítima. Concorrência de ascendente com o cônjuge sobrevivente (Código Civil, art. 1.829, inc. II). Na data do falecimento do autor da herança sua genitora era viva, portanto cabe ao cônjuge apenas metade da herança (Código Civil, art. 1.837).

Decisão mantida. Recurso desprovido (e-STJ, fl. 156).

Inconformada, X interpôs recurso especial, com fundamento no art. 105, III, a e c, da CF, alegando violação dos arts. 1.658, 1.659, I e II e 1.661 do CC/02, ao sustentar que na sucessão do cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente somente tem direito sobre os bens comuns do casal, não concorrendo com os demais herdeiros quanto aos particulares.

Contrarrazões do recurso especial (e-STJ, fls. 189/197).

O apelo nobre não foi admitido em virtude da incidência da Súmula nº 284 do STF e porque o dissídio jurisprudencial não foi demonstrado.

Nas razões do presente agravo em recurso especial, X sustentou que 1) era evidente a violação dos dispositivos mencionados no apelo nobre; 2) não visa reexaminar provas; e 3) o acórdão recorrido divergiu da interpretação dada pelo STJ.

Não foi apresentada contraminuta do agravo (e-STJ, fl. ).

É o relatório.

DECIDO.

O inconformismo não merece prosperar.

(...)

Não bastasse, há precedente específico nesta eg. Corte Superior no sentido de que o cônjuge sobrevivente concorre com o ascendente do falecido na sucessão legítima, independentemente do regime de casamento, sobre os bens particulares.

Nesse sentido, confira-se o seguinte julgado:

RECURSO ESPECIAL - SUCESSÃO - CÔNJUGE SUPÉRSTITE - CONCORRÊNCIA COM ASCENDENTE, INDEPENDENTE O REGIME DE BENS ADOTADO NO CASAMENTO - PACTO ANTENUPCIAL - EXCLUSÃO DO SOBREVIVENTE NA SUCESSÃO DO DE CUJUS - NULIDADE DA CLÁUSULA - RECURSO IMPROVIDO.

1 - O Código Civil de 2.002 trouxe importante inovação, erigindo o cônjuge como concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão legítima. Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que, apesar de não terem qualquer grau de parentesco, são o eixo central da família.

2- Em nenhum momento o legislador condicionou a concorrência entre ascendentes e cônjuge supérstite ao regime de bens adotado no casamento.

3 - Com a dissolução da sociedade conjugal operada pela morte de um dos cônjuges, o sobrevivente terá direito, além do seu quinhão na herança do de cujus, conforme o caso, à sua meação, agora sim regulado pelo regime de bens adotado no casamento.

4 - O artigo 1.655 do Código Civil impõe a nulidade da convenção ou cláusula do pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta de lei.

5 - Recurso improvido.

(REsp nº 954.567/PE, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, Terceira Turma, julgado aos 10/5/2011, DJe de 18/5/2011).

Finalmente, cabe acrescentar que o entendimento jurisprudencial desta Corte citado no apelo nobre da recorrente encontra-se superado, como pode se observar dos seguintes julgados que o sucederam:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO.

CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA.

1. Não se constata violação ao art. 535 do Código de Processo Civil quando a Corte de origem dirime, fundamentadamente, todas as questões que lhe foram submetidas. Havendo manifestação expressa acerca dos temas necessários à integral solução da lide, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte, fica afastada qualquer omissão, contradição ou obscuridade.

2. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares.

3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus.

4. Recurso especial provido.

(REsp nº 1.368.123/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p. acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, Segunda Seção, julgado aos 22/4/2015, DJe de 8/6/2015).

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. INVENTÁRIO E PARTILHA.

REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO CONVENCIONAL. PACTO ANTENUPCIAL POR ESCRITURA PÚBLICA. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. CONCORRÊNCIA NA SUCESSÃO HEREDITÁRIA COM DESCENDENTES. CONDIÇÃO DE HERDEIRO. RECONHECIMENTO.

EXEGESE DO ART. 1.829, I, DO CC/02. AVANÇO NO CAMPO SUCESSÓRIO DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL.

1. O art. 1.829, I, do Código Civil de 2002 confere ao cônjuge casado sob a égide do regime de separação convencional a condição de herdeiro necessário, que concorre com os descendentes do falecido independentemente do período de duração do casamento, com vistas a garantir-lhe o mínimo necessário para uma sobrevivência digna.

2. O intuito de plena comunhão de vida entre os cônjuges (art. 1.511 do Código Civil) conduziu o legislador a incluir o cônjuge sobrevivente no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845), o que reflete irrefutável avanço do Código Civil de 2002 no campo sucessório, à luz do princípio da vedação ao retrocesso social.

[...]

8. O novo Código Civil, ao ampliar os direitos do cônjuge sobrevivente, assegurou ao casado pela comunhão parcial cota na herança dos bens particulares, ainda que os únicos deixados pelo falecido, direito que pelas mesmas razões deve ser conferido ao casado pela separação convencional, cujo patrimônio é, inexoravelmente, composto somente por acervo particular.

9. Recurso especial não provido.

(REsp nº 1.472.945/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Terceira Turma, julgado em 23/10/2014, DJe de 19/11/2014).

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. BEM GRAVADO COM CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. CÔNJUGE QUE NÃO PERDE A CONDIÇÃO DE HERDEIRO.

1. O art. 1829 do Código Civil enumera os chamados a suceder e define a ordem em que a sucessão é deferida. O dispositivo preceitua que o cônjuge é também herdeiro e nessa qualidade concorre com descendentes (inciso I) e ascendentes (inciso II). Na falta de descendentes e ascendentes, o cônjuge herda sozinho (inciso III). Só no inciso IV é que são contemplados os colaterais.

2. A cláusula de incomunicabilidade imposta a um bem não se relaciona com a vocação hereditária. Assim, se o indivíduo recebeu por doação ou testamento bem imóvel com a referida cláusula, sua morte não impede que seu herdeiro receba o mesmo bem.

3. Recurso especial provido.

(REsp nº 1.552.555/RJ, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Quarta Turma, julgado aos 24/11/2015, DJe de 11/2/2016, sem destaque no original).

(...)

 (AREsp n. 1.100.382, Ministro Moura Ribeiro, DJe de 08/02/2018.)

 

Assim, o bem recebido com incomunicabilidade, ainda que excluído da comunhão, poderá ser objeto de herança em favor do cônjuge sobrevivente, garantindo o equilíbrio entre proteção patrimonial e justiça sucessória.


Conclusão


A incomunicabilidade no testamento é um valioso instrumento de proteção patrimonial e de planejamento sucessório.Ela garante que determinados bens se mantenham na esfera individual do herdeiro, mesmo diante de regimes de comunhão de bens, equilibrando autonomia e segurança.


No entanto, deve ser usada com moderação, acompanhada de assessoria jurídica especializada, para não gerar desequilíbrios sucessórios ou questionamentos futuros. O testamento ideal é aquele que protege com sabedoria, sem impedir a liberdade e a dignidade dos sucessores.


✍️ Por Thais Marachini Freitas – Advogada (OAB/SP 451.886)

Especialista em Direito de Família e Sucessões

 

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