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Capacidade para Adquirir por Testamento: O Nascituro, a Prole Eventual e as Pessoas Jurídicas como Herdeiros Possíveis

  • Foto do escritor: Thais Marachini
    Thais Marachini
  • há 22 horas
  • 4 min de leitura

O testamento é o instrumento mais elevado da autonomia privada no Direito das Sucessões. Nele, o testador exerce sua liberdade de disposição, transmitindo patrimônio e afetos conforme sua última vontade.


Entretanto, essa liberdade encontra limites objetivos, especialmente quanto à capacidade para adquirir por testamento, isto é, quem pode ser beneficiário da disposição testamentária.


O tema revela aspectos de técnica jurídica refinada, pois o Código Civil admite que pessoas ainda não nascidas, entidades futuras e até instituições inexistentes possam ser contempladas em testamento, desde que atendidas certas condições legais.


Trata-se de um campo em que a vontade do testador transcende o presente, projetando efeitos para o futuro, o que exige equilíbrio entre autonomia e segurança jurídica.

 

2. Base Legal: Artigos 1.798 e 1.799 do Código Civil


O ponto de partida está no artigo 1.798 do Código Civil, “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.


No caso do testamento, entretanto, o art. 1.799 amplia esse espectro:


Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;

II - as pessoas jurídicas;

III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.


O legislador, portanto, reconhece que a vocação testamentária é mais ampla do que a sucessão legítima. Enquanto esta depende da existência efetiva do herdeiro no momento da morte, o testamento pode projetar efeitos para o nascituro, a prole eventual e as pessoas jurídicas futuras.

 

3. O Nascituro e a Prole Eventual: A Vida em Potência como Sujeito de Direito


O nascituro, aquele já concebido, mas ainda não nascido, tem capacidade para adquirir por testamento, desde que venha a nascer com vida.A doutrina e a jurisprudência entendem que a herança deferida ao nascituro fica sob condição suspensiva até o nascimento, quando, então, o direito se consolida.


Mais complexa é a hipótese da prole eventual (art. 1.799, I), que se refere aos filhos ainda não concebidos de pessoas determinadas pelo testador, por exemplo:


“Instituo herdeiros os filhos que vierem a nascer do meu sobrinho João.”


Nesse caso, o testador confere expectativa de direito a uma pessoa que ainda não existe, mas cuja concepção é juridicamente possível.


A doutrina destaca que a disposição é válida, mas subordinada à dupla condição:


  1. o beneficiário indicado (no exemplo, o sobrinho) deve estar vivo no momento da abertura da sucessão; e

  2. o filho deverá nascer com vida.


No entanto, caso ainda não exista, há previsão de limitações temporais.


3.1. A sucessão não admite expectativas perpétuas


Ainda que o Código Civil não traga prazo expresso, a doutrina consolidada e a aplicação analógica do art. 1.800, §4º, do CC (que fixa prazo máximo de 2 anos para beneficiários pendentes de condição) levam à regra de que A PROLE EVENTUAL DEVE SER CONCEBIDA NO PRAZO DE ATÉ 2 ANOS APÓS A ABERTURA DA SUCESSÃO, e considerado pela jurisprudência como interpretação sistemática do sistema sucessório, que não tolera indeterminação eterna.


3.2. O que acontece se não houver concepção dentro do prazo?


Caso a prole eventual nunca venha a existir, a disposição CADUCA, revertendo-se o bem ao monte hereditário, aplicando-se:


·         art. 1.944 do CC (retorno ao monte hereditário),

·         art. 1.967 do CC (reduções),

·         art. 1.829 do CC (ordem legítima).


Ou seja: a disposição testamentária não se aperfeiçoa.


3.3. O testador pode estabelecer prazo menor?


Sim, plenamente:


“Instituo herdeiros os futuros filhos de minha filha Maria, desde que concebidos no prazo de 12 meses após meu falecimento.”


Mas não pode estabelecer prazo superior ou indeterminado.

 

4. As Pessoas Jurídicas e a Vontade Post Mortem


O testamento também pode beneficiar pessoas jurídicas já existentes (art. 1.799, II), bem como entidades que venham a ser criadas após a morte do testador, desde que o ato testamentário estabeleça a condição ou termo para sua constituição (art. 1.799, III).


É o caso, por exemplo, de testador que destina parte de seu patrimônio “para a criação de uma fundação dedicada ao ensino de música para crianças carentes”.


Nessa hipótese, o testamento projeta um ato constitutivo futuro, vinculando os herdeiros e o Ministério Público à execução da vontade post mortem, sob fiscalização judicial.


Trata-se de clara expressão da autonomia da vontade e da função social da herança, em harmonia com os princípios da solidariedade e da continuidade dos valores do testador.


5. O Papel do Testamenteiro e o Controle Judicial


Diante dessas hipóteses em que o beneficiário ainda não existe (como a prole eventual ou a pessoa jurídica futura), o testamenteiro assume papel fundamental. Ele é o executor da vontade do testador e deve zelar para que as condições e encargos sejam observados, inclusive a constituição das entidades beneficiadas.


O juiz do inventário, por sua vez, exerce controle de legalidade, garantindo que o testamento produza seus efeitos apenas dentro dos limites da lei, evitando que a vontade do testador se torne juridicamente ineficaz.

 

6. Reflexos Éticos e Práticos: A Vontade que Ultrapassa o Tempo


A capacidade para adquirir por testamento reflete um dos aspectos mais belos do Direito das Sucessões: a perpetuação da vontade humana para além da vida.


Permitir que o testador destine bens a um ser que ainda não nasceu ou a uma instituição que ainda não existe é uma forma de eternizar sua memória, seus valores e afetos.


Trata-se de um tema em que o Direito dialoga com a filosofia e a afetividade: a herança deixa de ser mera transmissão de riqueza e passa a ser instrumento de continuidade moral e emocional.

 

Conclusão


A sucessão testamentária amplia o conceito de capacidade sucessória ao admitir beneficiários que ainda não possuem existência fática, mas têm potencial de existência jurídica.


O nascituro, a prole eventual e as pessoas jurídicas, presentes ou futuras, representam a força criadora do testamento, que permite ao testador moldar o futuro conforme sua visão de justiça e afeto.


Mais do que um ato patrimonial, o testamento é um ato de fé no futuro, e o ordenamento jurídico brasileiro reconhece e protege essa vontade.


Por Thaís Marachini Freitas – Advogada (OAB/SP 451.886)

Especialista em Direito de Família e Sucessões

📩 contato profissional: thais_marachini@hotmail.com

 

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