Legado e Objeto Ilícito: Quando a Vontade do Testador Encontra Limites Intransponíveis
- Thais Marachini
- há 2 dias
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O princípio da autonomia da vontade, que rege o direito sucessório, não constitui uma liberdade absoluta. Embora o testador possua ampla discricionariedade para dispor de seus bens mortis causa, tal poder esbarra em barreiras intransponíveis: a ordem pública, os bons costumes e as normas penais. O legado cujo objeto seja ilícito ou que possua uma finalidade contrária à lei está eivado de nulidade, configurando uma das mais sensíveis interseções entre a interpretação testamentária e os princípios constitucionais fundantes do Estado Democrático de Direito. Analisar esse tema exige compreender não apenas a letra da lei, mas a própria função social da propriedade e da sucessão.
2. Regime Legal e Princípios Norteadores: A Estrutura da Ilicitude
O ordenamento jurídico brasileiro é categórico ao estabelecer os limites da vontade individual. O artigo 1.899 do Código Civil declara que " Art. 1.899. Quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador.". mas tem que fazer a distinção crucial para a aplicação prática desses dispositivos:
· Ilicitude do Objeto (ou Causa): Ocorre quando o próprio bem ou direito legado é ilícito. Exemplos: legado de drogas ilícitas, de arma de fogo sem registro, ou de produto fruto de crime.
· Ilicitude do Fim (ou Motivo Determinante): Configura-se quando o objeto do legado é lícito, mas a finalidade específica apontada pelo testador é vedada.
Exemplo: deixar um imóvel para que seja utilizado como casa de jogos de azar ilegais; deixar uma quantia em dinheiro para financiar uma milícia.
Ambas as hipóteses conduzem à ineficácia do legado, por ofensa a princípios basilares como a ordem pública (conjunto de normas que visam o interesse da coletividade), a moralidade e a dignidade da pessoa humana.
3. As Nulidades Expressas: O Catálogo do Artigo 1.900 do CC
O legislador, buscando conferir maior segurança jurídica, elencou no artigo 1.900 situações concretas que geram a nulidade da disposição testamentária, independentemente de análise subjetiva sobre ilicitude. São vícios insanáveis:
“Art. 1.900. É nula a disposição:
I - que institua herdeiro ou legatário sob a condição captatória de que este disponha, também por testamento, em benefício do testador, ou de terceiro;
II - que se refira a pessoa incerta, cuja identidade não se possa averiguar;
III - que favoreça a pessoa incerta, cometendo a determinação de sua identidade a terceiro;
IV - que deixe a arbítrio do herdeiro, ou de outrem, fixar o valor do legado;
V - que favoreça as pessoas a que se referem os arts. 1.801 e 1.802.”
· Condição Captatória (Inc. I): É nula a disposição que institui herdeiro ou legatário sob a condição de que este, por sua vez, disponha de seus bens em favor do testador ou de terceiro por meio de testamento. O objetivo é coibir a manipulação da liberdade testamentária alheia e o conluio para burlar a sucessão legítima de outrem.
· Pessoa Incerta (Inc. II e III): A lei exige que o beneficiário seja determinado ou determinável. É nulo o legado a favor de "um morador de rua que eu ajudei" (incerta, não averiguável) ou que deixe a um terceiro a tarefa de escolher o beneficiário (incerta por comissão a terceiro), pois isso subtrai a autoria da vontade do testador.
· Valor Incerto (Inc. IV): O valor do legado deve ser estabelecido pelo testador. É vedado deixar ao arbítrio do herdeiro ou de qualquer outra pessoa a fixação do quantum, sob pena de nulidade, para evitar conflitos e insegurança jurídica.
· Pessoas Não Legitimadas (Inc. V, c/c arts. 1.801 e 1.802): Este inciso é um dos mais relevantes na prática. Ele inviabiliza disposições em favor de pessoas envolvidas diretamente na confecção do testamento, visando prevenir o abuso de confiança e o conflito de interesses.
“Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários:
I - a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou companheiro, ou os seus ascendentes e irmãos;
II - as testemunhas do testamento;
III - o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos;
IV - o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento.
Art. 1.802. São nulas as disposições testamentárias em favor de pessoas não legitimadas a suceder, ainda quando simuladas sob a forma de contrato oneroso, ou feitas mediante interposta pessoa.
Parágrafo único. Presumem-se pessoas interpostas os ascendentes, os descendentes, os irmãos e o cônjuge ou companheiro do não legitimado a suceder.”
4. Consequências Processuais
A declaração de nulidade de um legado por qualquer desses vícios é feita via ação de nulidade de testamento. O juiz, ao analisar o caso, deve primar pelo princípio da conservação do ato jurídico. Isto significa que, se for possível, mediante interpretação, salvar a vontade testamentária, excluindo-se apenas a parte viciada, o magistrado assim o fará.
A atuação do advogado planejador é fundamental para evitar tais cenários:
· Conhecimento Profundo das Nulidades: Dominar os arts. 1.899, 1.900, 1.801 e 1.802 é essencial para a redação preventiva.
· Redação de Cláusulas Alternativas (Substituições): Incluir no testamento disposições expressas para o caso de o legado principal ser declarado nulo por qualquer dessas causas.
· Cuidado com a Motivação e a Forma: Evitar detalhar motivações que possam ser interpretadas como discriminatórias ou que configurem condição captatória. Assegurar que os beneficiários não se enquadrem no perfil do art. 1.801.
Conclusão
A liberdade de testar, embora ampla, é rigidamente circundada por um sistema de nulidades que visa proteger a moralidade, a lealdade e a própria função social do instituto. O artigo 1.900 do CC, em conjunto com os demais, funciona como um código de conduta para o testador.









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