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A Nulidade do Testamento por Incapacidade do Testador

  • Foto do escritor: Thais Marachini
    Thais Marachini
  • há 2 dias
  • 4 min de leitura

A liberdade de testar, pilar do direito sucessório, encontra seu limite intransponível na necessidade de o testador manifestar sua vontade com pleno discernimento. A anulação do testamento por incapacidade representa um dos temas mais delicados e complexos da seara sucessória, pois coloca em conflito direto o princípio da autonomia privada e o interesse público na proteção dos incapazes. A sensibilidade do tema é acentuada pela dificuldade probatória inerente, que frequentemente envolve a produção de prova pericial complexa, a análise de presunções notariais e a aplicação do princípio da conservação do ato jurídico, que privilega a validade do ato frente à sua nulidade.


2. Base Normativa e Parâmetro Temporal: O Momento Crítico do Ato


A regra matriz está insculpida no artigo 1.860 do Código Civil, que estabelece, além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.


     “Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.

Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.”


·         Capacidade "In Concreto": Não basta a mera existência de uma doença debilitante, como Alzheimer ou outra demência. É indispensável demonstrar que, naquele exato instante da lavratura do testamento, o agente não possuía o necessário discernimento para compreender a extensão de seus bens, a natureza do ato que praticava e a identidade dos seus herdeiros naturais (a memóriainteligência e vontade).

 

·         Irrelevância de Eventos Anteriores ou Posteriores: Um diagnóstico posterior ao ato ou um declínio cognitivo que se manifestou apenas depois da lavratura não contamina o ato jurídico perfeito. Da mesma forma, momentos de lucidez intercalados com períodos de incapacidade validam os atos praticados durante tais intervalos.


3. O Ônus Probatório e o Universo de Provas Admissíveis


Cabe ao autor da ação de anulação (impugnante) o ônus de comprovar, de forma robusta e convincente, a incapacidade do testador no momento específico do ato. A alegação genérica e desprovida de suporte fático está fadada ao insucesso.


Provas Robustas e de Alto Impacto:


·         Laudos Médicos Contemporâneos: Prontuários e relatórios médicos datados próximos ao ato, que descrevam explicitamente o comprometimento cognitivo do testador, são de valor inestimável.

·         Perícia Neurológica Retroativa: Embora complexa, é viável mediante a análise minuciosa de todo o conjunto documental médico preexistente (exames de imagem, prescrições de medicamentos psicotrópicos, evoluções clínicas) por perito especializado.

·         Depoimentos Técnicos: Oitiva de médicos, neurologistas, psiquiatras e cuidadores que tratavam o testador, capazes de detalhar seu estado mental e funcionalidade no período.

·         Registros Audiovisuais: Gravações que capturem o testador em estado de evidente confusão mental, desorientação ou impossibilidade de comunicação no período circunvizinho ao ato.


Provas Complementares e Corroborações:


·         Certidão de Saúde do Tabelionato: Muitos tabelionatos, por prática interna, exigem atestado médico. A inexistência deste ou a sua emissão por profissional não especialista pode ser utilizada como indício.

·         Testemunhas Idôneas: Pessoas que conviviam com o testador (amigos, familiares, empregados) podem relatar episódios de desorientação, não reconhecimento de pessoas ou esquecimento de fatos recentes.

·         Termo de Recusa de Coleta de Assinatura: Se o tabelião se recusou a lavrar o ato em determinado momento por perceber incapacidade, o registro dessa recusa é prova potente.

·         Anotações e Registros Pessoais: Diários, e-mails ou mensagens que revelem comportamento delirante, paranoico ou de grave confusão mental.


4. A Perícia Técnica: Desvendando o Estado Mental Retrospectivamente


A valoração pericial é, frequentemente, o eixo central da demanda. A perícia deve ser multidisciplinar, podendo envolver:


·         Neurologia Geriátrica: Para avaliar o estágio e a progressão de demências.

·         Psiquiatria Forense: Para analisar transtornos psiquiátricos que afetem o discernimento.

·         Análise da Coerência do Conteúdo: A própria redação do testamento pode ser analisada.


Disposições manifestamente absurdas, contraditórias ou que destoam completamente da história afetiva do testador podem servir como indício de alteração cognitiva.


5. A Teoria do Ato Perfeito e os Riscos Processuais da Impugnação


O ordenamento jurídico brasileiro, por segurança jurídica, presume a validade do ato jurídico e adota o princípio da conservação dos atos jurídicos. O artigo 1.971 do Código Civil protege especificamente o testamento, estabelecendo que a sua invalidade não prejudica as disposições de conteúdo revogatório de testamentos anteriores.


Art. 1.971. A revogação produzirá seus efeitos, ainda quando o testamento, que a encerra, vier a caducar por exclusão, incapacidade ou renúncia do herdeiro nele nomeado; não valerá, se o testamento revogatório for anulado por omissão ou infração de solenidades essenciais ou por vícios intrínsecos.


Os riscos de uma impugnação temerária ou mal fundamentada são significativos:


·         Condenação em Custas e Honorários Advocatícios: A parte vencida pode ser condenada ao pagamento das despesas processuais e honorários da parte contrária.

·         Insegurança Patrimonial e Conflitos Familiares: A ação judicial prolongada gera instabilidade no espólio e pode aprofundar divisões familiares.

·         Dano Moral Inverso: O herdeiro instituído, se agindo de boa-fé, pode pleitear indenização por danos morais em ação autônoma.


Conclusão: O Dever de Cautela e Técnica


A nulidade do testamento por incapacidade do testador é um remédio jurídico extremo, destinado a proteger a autenticidade da vontade e coibir abusos. No entanto, anular um ato de última vontade é empreitada das mais árduas, demandando prova sólida, robusta e direta do comprometimento do discernimento no momento do ato.


Por Thais Marachini Freitas — Advogada (OAB/SP 451.886) — Especialista em Direito de Família e Sucessões

 

 

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